A Repórter Brasil começa a publicar uma série de nove reportagens sobre os impactos de uma década da liberação de sementes modificadas no país. Próximos textos abordarão diversos aspectos, como os riscos denunciados por ambientalistas aos direitos do agricultor e à saúde do consumidor
Por Maurício Thuswohl
Se o Brasil decidisse comemorar os dez anos, completados em junho, da primeira legalização de um plantio de sementes geneticamente modificadas no país, a confecção de pelo menos uma parte dos quitutes para a festa certamente levaria produtos obtidos a partir de alimentos transgênicos. Negociada entre o governo brasileiro e o Congresso Nacional como reconhecimento a um fato consumado – a introdução ilegal nas lavouras do Rio Grande do Sul da soja geneticamente modificada RoundUp Ready, desenvolvida pela empresa transnacional Monsanto para resistir ao herbicida glifosato – a lei 10.688/2003 foi sancionada há uma década pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde então, os transgênicos se impuseram como uma realidade nacional e conquistaram espaço significativo no mercado, apesar do desconhecimento da maioria da população sobre seus riscos e da rejeição de diversas organizações representativas dos movimentos sociais.
O Brasil é hoje, ao lado dos Estados Unidos, líder mundial da produção de soja transgênica. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), 88% da safra de soja 2012/2013, que produziu impressionantes 81,3 milhões de toneladas, era composta por grãos geneticamente modificados, que ocuparam 37,1 milhões de hectares. Impulsionada pelo restrito clube de empresas que atua no setor, a força dos transgênicos na atual safra se estende a outras importantes commodities no país, como o milho e o algodão, que também já têm a maior parte de sua produção – 60% e 55%, respectivamente – composta por transgênicos. Na próxima safra (2013/2014), os transgênicos também serão parte da produção do símbolo maior da alimentação do povo brasileiro, o feijão, com o plantio de uma modalidade resistente ao vírus do mosaico dourado do feijoeiro, desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Uma estimativa divulgada pelo Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB), baseada em estudo realizado pela consultoria de estratégias em agronegócio Céleres, diz que, somados todos os cultivares, o Brasil terá na safra 2013/2014, que começará a ser plantada em outubro, uma área de 40,3 milhões de hectares ocupada com transgênicos. Líder de mercado, a soja transgênica deverá ocupar quase 27 milhões de hectares na safra 2013/2014, em uma expansão de 8,9% sobre a última safra, e permanecerá presente em todo o país, com destaque para os estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
O milho transgênico, segundo o CIB, tem uma área total de cultivo para a próxima safra estimada em quase 13 milhões de hectares, já consideradas as colheitas de verão e a safrinha, o que elevaria a 81% a participação dos transgênicos na produção total de milho no Brasil. De acordo com a Embrapa, a safra 2013/2014 terá 467 cultivares de milho em todo o país, dos quais 54% (253) serão ocupados por plantas transgênicas.
Na última safra, a área total de algodão plantada no Brasil – o plantio acontece em todo o país, com exceção das zonas de exclusão no Pantanal e na Amazônia – se aproximou de um milhão de hectares. Para a safra 2013-2014, espera-se que pouco mais de 500 mil hectares sejam ocupados por plantas transgênicas, o que representa um aumento de 4,8% em relação à safra anterior. Segundo o CIB, este ano o algodão transgênico deverá ultrapassar 60% da produção total de algodão no país.
Opiniões
A rápida expansão do mercado de transgênicos no Brasil é saudada pelas organizações representativas dos produtores. Diretor técnico da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso (Aprosoja-MT), entidade filiada à Associação Nacional dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), Nery Ribas define os transgênicos como “um diferencial” na agricultura brasileira: “A evolução da transgenia representou uma revolução na agricultura, com a otimização e agilização do processo de produção, a otimização da utilização de máquinas, o ganho de tempo e a manutenção do funcionário na propriedade”, diz. A Aprosoja, segundo seu diretor, considera a transgenia um “evento de suma importância”, uma “uma inovação tecnológica fantástica” e “uma grande ferramenta para o produtor”.
No movimento socioambientalista, a visão é bem diferente. Para Jean Marc von der Weid, membro da Equipe Executiva da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), organização especializada em agricultura familiar e agroecologia e fundadora da Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos e Agrotóxicos, por trás da evolução dos transgênicos se esconde uma ameaça concreta à soberania alimentar do Brasil: “As desvantagens das plantas transgênicas em comparação com as convencionais, e mais ainda com as agroecológicas, estão cada dia mais fortes e demonstradas. O que sustenta o domínio dos transgênicos em setores da agricultura brasileira não são suas ‘vantagens comparativas’, mas o virtual monopólio da produção de sementes por parte das empresas que controlam a transgenia”, diz.
A postura da atual gestão do Ministério do Meio Ambiente é levar o tema transgênicos em banho-maria e evitar o enfrentamento dentro do governo
Procurado pela Repórter Brasil por telefone e e-mail, o secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA, Roberto Cavalcanti, não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre a avaliação do ministério acerca do atual estágio de expansão dos transgênicos no país. Um integrante do segundo escalão do ministério, que pede para não ter seu nome revelado, diz que o tema não faz mais parte das prioridades do ministério: “A postura da atual gestão do MMA é claramente a de levar o tema transgênicos em banho-maria e evitar o enfrentamento dentro do governo”, diz.No governo, a disputa interna que colocou de um lado os ministérios do Meio Ambiente (MMA) e do Desenvolvimento Agrário (MDA), e de outro os ministérios da Agricultura (Mapa) e da Ciência e Tecnologia (MCT) durante todo o governo de Lula (2003-2010) parece ter sido progressivamente ultrapassada pelos fatos: “A expansão dos transgênicos ocorreu basicamente porque foi gerada uma tecnologia que, pela percepção dos produtores, foi vista como algo que poderia resolver muitos problemas que eles tinham. Por essa razão, a área plantada com essa tecnologia avançou rapidamente e, no Brasil, talvez tenha avançado mais rapidamente do que em outros países em termos de tempo e de área. O caso do milho, por exemplo, foi muito marcante. Isso mostra a importância dessa tecnologia para os produtores”, diz Francisco Aragão, responsável pelos estudos sobre transgênicos da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, órgão subordinado ao Mapa, onde coordena o Laboratório de Genética.
A Aprosoja reconhece que algumas propaladas vantagens da cultura transgênica não se confirmaram na prática: “Depois de muitos anos, a gente considera que a produtividade e o custo de produção entre a soja transgênica e a soja convencional são iguais. Ao longo dos anos, o preço do glifosato subiu, os preços dos produtos do trato convencional baixaram e assim por diante. Não dá para falar que um produto é mais caro ou mais barato que o outro e que produz mais ou menos que o outro. O que diferencia hoje é a bonificação paga ao produtor convencional. Tem gente que está recebendo o que nunca recebeu: até 50 dólares por tonelada de soja convencional. Isso dá um plus de até R$ 5 por saca. Então, é interessante. O produtor pode fazer as contas. É opção dele, utilizar a soja transgênica ou não”, diz Nery Ribas.
Já os que militam contra a chegada de organismos geneticamente modificados sem as devidas medidas de segurança ao mercado brasileiro dizem acreditar que a atual supremacia dos transgênicos pode ser revertida: “A guerra não terminou, embora tenhamos perdidos algumas batalhas. As evidências sobre os riscos dos transgênicos estão cada vez mais numerosas e contundentes, apesar dos imensos gastos das empresas em propaganda para desqualificar e desmoralizar os cientistas independentes. O que ganhamos nesses dez anos de luta contra os transgênicos foi tempo. Ao impedirmos a invasão transgênica simultânea com a ocorrida nos EUA e Argentina, ganhamos a possibilidade de mostrar aos agricultores brasileiros os problemas vividos pelos produtores desses países após os primeiros anos de aparentes vantagens. Isso não impediu a expansão da soja transgênica, mas a freou. Repare que só no Rio Grande do Sul o predomínio é absoluto, enquanto no Centro-Oeste cresce a resistência a esses produtos”, avalia Jean Marc.
Pedidos em série
Sinônimo de transgênico ao longo dos últimos dez anos no Brasil, a soja modificada deve sua entrada no país ao poder da empresa de origem estadunidense Monsanto. Desde 1997, com a chegada às mãos de agricultores gaúchos dos primeiros grãos da soja transgênica conhecida como “maradona”, contrabandeada da Argentina, a Monsanto soube vender as supostas vantagens produtivas da semente RoundUp Ready, mais conhecida como RR, por ser resistente ao herbicida glifosato, também produzido pela empresa. Apesar dos percalços legais – o Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu este ano a cobrança de royalties da RR aos produtores por considerá-la abusiva – e mesmo com a concessão de autorização para plantio comercial concedida a produtos desenvolvidos por outras empresas, a Monsanto ainda reina absoluta no mercado brasileiro de transgênicos após uma década da liberação de seu primeiro plantio de soja RR.
Órgão responsável por aprovar todos os pedidos de pesquisa, produção e comercialização de qualquer tipo de organismo geneticamente modificado no Brasil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) já liberou, além dos produtos da Monsanto, outros três pedidos de comercialização de soja transgênica para as empresas Bayer, Basf e Embrapa. Na próxima safra, a Monsanto lançará no mercado uma nova tecnologia, batizada como Intacta, com o início do plantio programado para a segunda quinzena de setembro, que será duplamente resistente a herbicidas e a insetos. A Monsanto decidiu priorizar essa nova tecnologia no Brasil porque a China, principal consumidora da soja transgênica brasileira, liberou este ano sua comercialização, o que traz perspectivas concretas de seu avanço no mercado internacional.
O objetivo manifestado pela Monsanto é ocupar com a nova cultura 10% da área plantada com soja no Brasil. Segundo estimativa da Associação Brasileira de Sementes (Abrasem), a empresa já está disponibilizando para venda aos produtores cerca de 3 milhões de sacas da Intacta. As cinco variedades de soja transgênica que tiveram sua comercialização autorizada pela CTNBio até hoje são: RR, da Monsanto, em 1998; Cultivance, parceria da alemã Basf com a brasileira Embrapa, em 2009; Liberty Link, da alemã Bayer, em 2010 (duas vezes); e Intacta, da Monsanto, em 2010.
Já a liberação comercial do milho transgênico começou em 2007, com as variedades Liberty Link, desenvolvida pela Bayer, Yield Gard, pela Monsanto, e Bt11, pela transnacional de origem suíça Syngenta. Nos anos seguintes, a CTNBio autorizou a produção para fins comerciais de outras 15 variedades de milho transgênico, desenvolvidas por essas três empresas e também pelas estadunidenses DuPont e Dow Agrosciences.
A primeira variedade de algodão transgênico a ter sua produção para fins comerciais autorizada no Brasil foi o Bolgard I, desenvolvido pela Monsanto. Aprovada em 2005, a semente geneticamente modificada também é conhecida como algodão B.t, pois resulta em plantas adicionadas com genes do Bacillus thuringienses, que produzem toxinas com poder inseticida e se tornam resistentes a pragas como o bicudo e a lagarta. Até hoje, a CTNBio já autorizou a comercialização de outras 11 variedades de algodão transgênico, produzidas pelas empresas Bayer e Dow Agrosciences, além da própria Monsanto.
Contaminação
O avanço dos transgênicos no Brasil é acelerado, mas os ambientalistas ainda têm esperança de reverter o cenário atual: “A questão vital para ganhar a batalha no futuro é garantir a produção de sementes não transgênicas e reverter a interpretação legal que faz hoje de um agricultor convencional contaminado por seu vizinho produtor de transgênicos um pirata dos direitos da Monsanto e sujeito a processos e multas. Essa legislação é um dos maiores fatores para o predomínio da Monsanto e outras empresas do gênero, pois permite uma estratégia de dominar pela contaminação e pelo controle da produção de sementes. O agricultor que não quer plantar transgênicos acaba desistindo ao ter de pagar seguidas multas quando sua produção é contaminada”, diz Jean Marc von der Weid, para quem “não seria sequer necessário mudar a interpretação da lei de patentes, mas aplicá-la com rigor”.
O primeiro passo, diz o dirigente da AS-PTA, é regulamentar a cobrança de multas aos agricultores convencionais que têm suas lavouras contaminadas e acabam tachados como piratas da tecnologia transgênica: “Se as empresas fossem obrigadas a cobrar dos agricultores ‘piratas’ apenas a parte transgênica da sua produção, o agricultor contaminado não pagaria mais do que 3% a 5 % de multa, e não os 100% hoje cobrados. A questão é que o teste de transgenia usado pelos fiscais apenas indica se existe mais do que 1% de transgênicos no lote examinado. Com isso, a cobrança é feita como se houvesse 100% de transgênicos no lote. Se a Monsanto for obrigada – e nós vamos à Justiça para provocar uma decisão – a usar um teste que defina com precisão quanto de cada lote é constituído por transgênicos, esse instrumento de constrangimento aos agricultores vai desaparecer”, aposta.